Bahia ‘retoma processo histórico’ ao ter Revolta dos Búzios como tema do Carnaval
Esse ano o governo do Estado anunciou como tema do Carnaval do Pelourinho a celebração dos 220 anos da Revolta dos Búzios, um dos acontecimentos mais importantes da história da Bahia. Em entrevista ao Bahia Notícias, Carlos Eduardo Carvalho de Santana, diretor de Educação do Malê Debalê, explica por que a inconfidência baiana tem menos espaço nas discussões sobre a história do Brasil e as diferenças entre o movimento com outras inconfidências que ocorreram no país, como a Mineira e a Carioca. “O que há de diferente na Inconfidência Mineira é que talvez o grande grosso da se dá com a Elite. Tiradentes vai ser uma espécie de um indivíduo representante da classe popular, ele é o mais pobre digamos assim, então foi muito fácil você escolher um ícone, nós vamos ter um herói. Na inconfidência baiana você tem algumas diferenciações. […] Diferentemente da Inconfidência Mineira, em que você tinha grandes lideranças, grandes senhores de Engenho, escravocratas e um ícone, aqui não, aqui será ao contrário. A maior parte são populares. Era uma revolta que iria enaltecer o povo e, se você enaltece a classe mais baixa, você está mudando o sentido da pirâmide. É muito mais fácil você escolher um ícone e transformar em um mártir do que transformar uma massa em líderes. Tanto que na Revolta de Búzios 11 escravos serão presos, todos os senhores serão absolvidos”, detalha. Carlos cita ainda que, mesmo após da independência do Brasil, não se alcançou os objetivos buscados pelos inconfidentes baianos. “É um processo extremamente brutal nesse sentido, o que nos faz fazer uma reflexão de que, assim que o Brasil se torna independente, anos depois, não significa necessariamente a liberdade. Você termina se separando de Portugal, mas a escravidão continua e, quando chega o processo da libertação da escravidão, você ainda tem as demandas que não foram resolvidas desde Búzios. A República só vem depois. É como se houvesse uma tentativa de que esses ideais não fossem postos em prática da forma como foi foram pensados, como se houvesse uma especie de controle”, aponta. Mesmo assim, o educador defende a importância de se tratar sobre o assunto durante o Carnaval. “Hoje você vai estar dizendo ao mundo que a Bahia está fazendo uma retomada de um processo histórico e as pessoas vão ter que estudar para saber que processo histórico é esse”.
Esse ano o governo do Estado anunciou como tema do Carnaval a celebração dos 220 anos da Revolta dos Búzios. Eu queria saber a sua avaliação como dirigente de um bloco afro, como professor, educador, com todo o seu conhecimento, sua avaliação sobre este tema para o Carnaval.
Nós tivemos, no ano passado, uma primeira reunião com a Fundação Cultural Pedro Calmon para fazer essa discussão. Esse ano nós estaríamos fazendo um grande movimento na Bahia em função dessa temática e os blocos participaram, Olodum, Ilê Aiyê, todo mundo participou. Então, primeiro, a Revolta dos Búzios tem uma dimensão histórica muito relevante. Eu estou falando do contexto do Brasil como um todo, porque a Revolta de Búzios traz alguns elementos que são extremamente positivos, inclusive para pensar no que é hoje o nosso país. Primeiro que é um movimento de jovens, a faixa etária dos meninos que participam é bastante baixa, mas ao mesmo tempo é um movimento de jovens antenados com tudo que estava acontecendo no mundo, Então você vai ver que no alto da devassa vão ter várias citações sobre o que estava acontecendo na Polônia, o que estava acontecendo na França principalmente, o que estava acontecendo nos Estados Unidos, e um referencial que é muito positivo é o Haiti. O Haiti vai ser um momento importante na história da América por ter sido a primeira república negra. Primeiro ponto importanteda Revolta de Búzios é pensar que é um movimento globalizado, nós já estamos falando de uma globalização muito antes de falar de termos uma internet, computador, ou outras ferramentas atuais. Isso significa dizer que aí ja começa o primeiro ponto positivo de Búzios. Quer dizer, a Bahia já é um grande celeiro dessas discussões mundiais. Isso já começa a romper a ideia de que nós estávamos isolados, de que eramos só uma “colôniazinha” e coisa e tal isso, já é um ponto positivo. Salvador é essa cidade cosmopolita. A cidade onde vários povos estão transitando, trazendo ideia de todos os lugares. Esse é o primeiro ponto. Um segundo ponto importante é você pensar uma articulação dentro da cidade de Salvador contando com vários elementos, vários segmentos da economia e, de modo geral, da produção. É um movimento que vai envolver senhores de Engenho, mas também professores, padres, médicos, padres de várias congregações diferentes, você vai ter a participação de soldados e ex-escravos. O que você vai perceber é uma participação que vai envolvendo vários segmentos, que significa dizer que naquele momento em Salvador a ideia da liberdade da República e, obviamente, a independência já começa a mostrar que era um guerrilho popular. Isso é um diferencial com relação às outras inconfidências que vão ocorrer no mesmo período.
Algumas figuras proeminentes à frente da Revolta dos Búzios não são tão lembradas, sobretudo nacionalmente. A gente tem Tiradentes, na Inconfidência Mineira, o feriado, todo mundo diz que ele é uma figura icônica. Por que as figuras emblemáticas da Revolta dos Búzios não têm essa proporção?
Tem algumas diferenças com relação às três inconfidências – teve também Inconfidência no Rio de Janeiro no mesmo período, chamada de Inconfidência Carioca, mas uma Inconfidência realizada apenas por intelectuais, um grupo de intelectuais cariocas que pleiteavam a maior inserção da literatura brasileira no contexto. O que há de diferente na Inconfidência Mineira é que talvez o grande grosso da se dá com a Elite. Tiradentes vai ser uma espécie de um indivíduo representante da classe popular, ele é o mais pobre digamos assim, então foi muito fácil você escolher um ícone, nós vamos ter um herói. Na inconfidência baiana você tem algumas diferenciações. A Bahia estava vivendo ainda a transição de ser a capital, os olhos da coroa estavam para a Bahia, então a inconfidência baiana precisava ter uma ação mais enérgica do governo, da coroa, a reação na Bahia precisava ser exemplar. A inconfidência da Bahia precisava dizer “não podem mais fazer isso” e o que é emblemático é que, diferentemente da Inconfidência Mineira, em que você tinha grandes lideranças, grandes senhores de Engenho, escravocratas e um ícone, aqui não, aqui será ao contrário. A maior parte são populares, é uma revolta de populares. Era uma revolta que iria enaltecer o povo e, se você enaltece a classe mais baixa, você está mudando o sentido da pirâmide. É muito mais fácil você escolher um ícone e transformar em um mártir do que transformar uma massa em líderes. Tanto que na Revolta de Búzios 11 escravos serão presos, todos os senhores serão absolvidos. Desses 11, um comete suicídio, que até hoje não foi bem explicado. Como ele ia cometer dentro da cadeia? Porque foi cometido através da ingestão de uma dose de mercúrio… Dos outros 10, chegam na capital apenas os cinco finais, sendo que, dos cincos, um foge, que é Luiz Pires, e os outros quatro vão ser os responsabilizados por todo o movimento que moveu mais de 200, talvez 300 pessoas na cidade de Salvador e no Recôncavo. É importante pensar que é um movimento que extrapola a cidade de Salvador, então me parece que certamente ao pensar o movimento na Bahia, e há um recorte que terminantemente não há como desconsiderar, estamos falando em vista de se tornar o exemplo de uma massa. Mas é um recorte que nós não podemos deixar de esquecer, que é uma inconfidência de negros, pardos e mulatos, e isso também se põe contra a Revolta de Búzios na questão da visibilidade. Há uma espécie de intencionalidade de não dizer que houve na Bahia um movimento negro, porque é muito emblemático, é um movimento que antecede inclusive as discussões do Brasil sobre o processo da independência da República. Enquanto a Inconfidência Mineira é um movimento de independência, “nós vamos nos tornar livres de Portugal, daqui para frente a gente vai ver o que vai fazer”, aqui não. Eles estão pretendendo a independência do Brasil, mas também a implementação da República. Eles falam de um Partido Republicano na Bahia, falam de um movimento que prevê a abolição da escravatura, já preveem a abertura dos portos, até antecedendo a fala de Dom João que vai chegar aqui muito tempo depois. Eles já falam da reivindicação dos soldados da milícia, já preveem a laicidade do Estado… é um movimento muito mais complexo e talvez por isso a necessidade também de visibilizar esse movimento, porque são muitas ideias perigosas. Tem uma coisa que me chama atenção na Revolta dos Búzios, e isso está dito entre os doze boletins – sendo que, assim que foi publicado, o décimo segundo foi rasgado, então só 11 foram para devassa -: teve um momento importante, em que se começa a dizer que “a chegar ao tempo em que nós seremos felizes”. Quer dizer, é um movimento inusitado, nós estamos falando de um movimento que introduz um aspecto extremamente subjetivo, que é a questão da afetividade também, não apenas reivindicatórios. Naquele momento há exacerbação da colônia, Portugal está passando por momentos econômicos bastante difíceis, e Salvador é um grande celeiro econômico, é a grande galinha dos ovos de ouro. Então um movimento como esse tem o impacto, “vocês estão querendo fazer um movimento para que eu perca essa galinha dos ovos de ouro”, então é uma ação que precisava ser cortada pela raiz. Búzios naquele momento vai ter um impacto tão grande quanto foi o Haiti, obviamente que guardando as devidas proporções, porque lá houve o exito, eles chegam no final e conseguem derrotar o exército de Napoleão. E aqui não há um êxito. Por conta disso, aqui é um exemplo do que não façam, e lá é um exemplo do que fazer se vocês quiserem dar certo. Então me parece que essa intencionalidade de Búzios era justamente para propagar que não façam, se vocês quiserem vai acontecer isso, não multiplicar essas ideias. E a pena foi algo brutal: as quatro gerações vão ser enforcadas, serão infames até a quinta geração… no ponto de vista religioso e econômico eles são a pior das piores coisas, não podem casar, não podem ser batizados, e não restringiu apenas aos quatro, mas levou até as próximas 5 gerações. É um processo extremamente brutal nesse sentido, o que nos faz fazer uma reflexão de que, assim que o Brasil se torna independente, anos depois, não significa necessariamente a liberdade. Você termina se separando de Portugal, mas a escravidão continua e, quando chega o processo da libertação da escravidão, você ainda tem as demandas que não foram resolvidas desde Búzios. A República só vem depois. É como se houvesse uma tentativa de que esses ideais não fossem postos em prática da forma como foi foram pensados, como se houvesse uma especie de controle. A história do Brasil no ponto de vista dos grandes movimentos é uma espécie de uma tentativa de não haver uma perda do controle. Assim foi a abolição, assim foi a República, assim foi o fim do regime militar… Acaba o regime militar, mas vamos ter eleições diretas? Não, ainda são progressivas.
Não sei se tem uma razão ou não, mas parece que é sempre tentando tirar o protagonismo da mão do povo, nunca foi o povo que fez.
E fomos nós que elegemos o mártir da Independência. Quer dizer, não é o povo, nós é que vamos decidir quem é esse mártir. E aí vem mais uma vez a história de Tiradentes: é melhor você deixar uma pessoa como mártir. Se você prestar bem atenção, Tiradentes passa a ser capturado como uma espécie de Jesus Cristo, com barba, aquela coisa bem cristã, e passa a fazer parte de uma espécie de simbolismo. Há de se perguntar até hoje se Tiradentes tinha uma fisionomia como aquela. Uma vez que ele era militar, provavelmente ele não fosse daquele jeito, cabelo, barba, nem pelo tempo que ele ficou na cadeia daria. Então é também uma tentativa de se construir um mito e é muito mais fácil você construir um mito dentro dessa conjuntura em que a elite decide, do que o movimento eminentemente do povo. Quer dizer, quantos heróis populares nós vamos ter na história do Brasil? Todos os heróis vão sendo decididos pela própria elite. Foi assim com Joana Angélica, Maria Quitéria, a própria história de Tiradentes, foi assim com Duque de Caxias… Recentemente me parece que é um movimento popular, e quando eu digo um movimento popular, leia-se os movimentos de um modo geral, de uma tentativa de se rever essa história do Brasil. Então essa tentativa de rever a história do Brasil certamente já é esse momento de tensão, de se perguntar exatamente “quem são os heróis mesmos da Pátria?”, “Quem são estes que vão ser colocados como referências da nossa nação?”. Nesse momento pós-Constituição, os movimentos, mas também pesquisas acadêmicas, devem apontar: quem é mesmo Rondon? Quem foi mesmo Duque de Caxias? Foi mesmo Pedro Álvares Cabral que descobriu o Brasil? E nesse conjunto entra a revisão das inconfidências, porque daí é importante pensarmos a Revolta dos Búzios também como uma medida de reparação histórica. Esses jovens estiveram em um plano de defesa do Brasil, tanto quanto os outros desse mesmo movimento, e é preciso fazer uma reparação histórica. Me parece que essa seria uma segunda importância desse resgate, hoje, de se revisitar, mais do que tudo resgatar os heróis, dizer eminentemente que houve um movimento popular, houve um movimento de articulação, ele não foi meramente espontâneo, não foi um levante de jovens que estavam insatisfeitos e de repente partiram. Foi um movimento pensado, articulado, globalizado. Então, antes de tudo, a Revolta de Búzios mostra para a juventude de hoje a possibilidade dessa insatisfação, mas de uma forma articulada, pensada, com vários segmentos. Não somos só nós, nós somos os insatisfeitos. E uma coisa que me chama atenção é um movimento de letrados. Acho que isso revisa muito da nossa história. Fazendo um recorte do que é o processo da escravidão do Brasil, também não foi contada pelo negro. A história da escravidão do Brasil sempre foi contada pela elite. Isso ainda é muito forte no nosso imaginário. Então nós imaginarmos que escravos eram letrados, sabiam ler e escrever, isso é uma coisa inusitada. O imaginário que nós temos dos escravos é que eles apanharam e fim de papo. Então a partir do século 18, 1700 adiante, começa a se impor o senso – todo senhor de engenho tinha que fazer seu senso, era uma forma de pagar impostos -, e ele foi um dos motivos da Inconfidência Mineira. Dizer quantos escravos você tem e quanto você vai ter que pagar a coroa era o imposto de renda daquela época. E nesse senso, alguns senhores de Engenho já indicavam as pessoas letradas. Então você vai ter províncias na Bahia que a população letrada é muito maior do que a população branca. Em idade ativa, você tem mais gente letrada do que brancos. Significa dizer que tem um contingente que não esteja aparecendo na estatística. Então essa Revolta dos Búzios dentro da cidade de Salvador, quando você vai ler sobre esses 10 escravos que foram ouvidos, que foram sentenciados, e tem os testemunhos deles, boa parte deles sabia ler e escrever, inclusive a esposa de João de Deus era professora de francês e traduzia os escritos que vinham da França. Você tem aí um movimento de letrados, isso desconstrói a ideia de que os escravos não tinham essa expertize. Você não está escrevendo só para os brancos, você está proclamando todos. Por isso que é uma opção pela escrita, por um boletim escrito, e se materializa a ideia, e conclama a todos que participem. E tem um outro aspecto de Búzios que daria para se investir numa pesquisa mais apurada, que é o aspecto religioso. Por que Búzios? Na devassa, alguns desses que foram presos trazem o búzio como elemento de identificação. A pergunta é: haveria, portanto, algum outro componente que não fosse apenas o critério de identificação? Porque o búzio tem um valor simbólico para algumas matrizes africanas. Ele tem um aspecto do mistério. Mas tem um componente de uma casa espírita, O Cavaleiro da Luz, que segundo alguns pesquisadores teria sido um dos protagonistas nessa história. Quer dizer, é uma casa Espírita, vinda da França, e que traz os ideais da Revolução Francesa. De certa forma, isso começa a se propagar. Então esse é outro componente, talvez nem tão explorado, mas que seria importante. Me parece que essa discussão hoje pensada no governo do estado tem essa amplitude de retomar todas essas discussões, como reparação. Isso é para além do Carnaval.
Você acha oportuno justo no Carnaval?
Eu acredito que sim, pela visibilidade e a possibilidade de como você pode trabalhar essas discussões. Tem a questão do simbolismo, você vai ter peças publicitárias, você vai ter os blocos tendo que falar sobre isso, você vai ter a imprensa tendo que falar sobre isso, e de certa forma isso dá uma visibilidade positiva. O carnaval de Salvador é a grande vitrine. Então hoje você vai estar dizendo ao mundo que a Bahia está fazendo uma retomada de um processo histórico e as pessoas vão ter que estudar para saber que processo histórico é esse. Para mim o Carnaval é apenas um pontapé inicial, me parece que ela deve ser entendida dessa forma. A partir de agora, temos alguns desafios. Primeiro, fazer com que essa mensagem alcance a Bahia, e isso significa dizer que a Bahia não é só Salvador – isso já é um desafio enorme. É preciso pensar isso para além, porque a Revolta dos Búzios passa pelo Recôncavo, Santo Amaro, Cachoeira, mas é preciso pensar isso no âmbito da Bahia como todo e o desdobramento disso para o Brasil a partir do momento que você divulga. O segundo desafio é, a partir desse primeiro, revisar o que nós estamos trabalhando hoje nas escolas, todas as redes públicas e privadas, ainda que estejamos sob o manto da lei que tornou obrigatória a história da África. Você tem a oportunidade de oportunizar concretamente esse debate dentro do Carnaval. Eu estou dizendo isso porque, quando se pensa na lei da África, se pensa além de projetos. Ela pensa em mudança de mentalidade, conteúdo… O ápice de Búzios é 12 de agosto, mas não significa dizer que aconteceu só em 12 de agosto. Búzios vem um ano antes pelo menos, e o 12 é simbólico por que é o dia dos jornais, mas a prisão é dia 25, e o enforcamento em novembro. Você trazendo isso para o Carnaval , você diz “Búzios não é só em agosto”, um movimento que você precisa pensar no ano todo. E se é isso para Búzios, isso também deve ser para outros movimentos. Você vê que agora em janeiro nós tivemos um dos maiores movimentos de luta urbana que ocorre na América, mas que não é visibilizado, que é a Revolta dos Malês. Talvez seja o maior movimento urbano, até o Haiti, que é um movimento rural que ocupa a capital. Malês não, é um movimento que o ápice é em 1835, mas já começa em 1804. É um ciclo de rebeliões islâmicas, em Salvador, Cachoeira, mas é invisibilizado, porque as escolas estão de férias, quando voltar [as aulas] já passou. É o que acontece com Dois de Julho, está no recesso escolar, quando a escola retoma já passou, e é um grande movimento popular indígena.
Mas de uns 10 anos para cá o Dois de julho é uma data que vem sendo mais explorada.
Na mídia sim, na televisão, mas não lá na escola. Isso ainda não chega lá, não é tão forte. Você não consegue perceber como esse debate vai acontecendo no contexto da escola no dia a dia. É importante trazer no Carnaval para poder disparar.
De repente agora está falando de Búzios, mas oportuniza o debate sobre outros movimentos, questões…
Você já tem aí uma segunda importância de ser no Carnaval. É você dizer “não, a partir de agora eu acredito que não vai ser só agora, mas que assim, a partir de agora, é preciso pensar essa temática ou pelo menos os desdobramentos dessa temática”. A terceira questão que eu acho muito significativa é o que você falou no início: é um momento muito oportuno para se discutir esse movimento resistênci contra a elite. Búzios nos ensina que é possível fazer essa luta de uma forma organizada, articulada, então é um momento muito importante pelo que o Brasil hoje vive do ponto de vista político. Búzios nos dá várias respostas ou várias pistas do que é preciso fazer e de que forma se fazer isso. Toda a saga de Búzios vai o tempo todo nos ensinando como deve se pensar uma sociedade que pode ser livre, pode ser feliz, toda a história da forma como foi feita, como foi pensada, vai nos ensinando que nós não podemos desistir, não podemos parar, não podemos nos acomodar, não podemos simplesmente dizer que é desse jeito e sempre foi assim. Me parece que Búzios pode nos dar algumas pistas nesse sentido. Aí como eu já disse antes, você pensar o protagonismo da juventude, esse protagonismo popular e de classes… Tem alguns teóricos que dizem até “não bota classe no meio para não virar um movimento marxista”, mas nós não estamos falando de proletariado. Obviamente não é uma disputa de classes, mas há um componente de classes, há o professor, a edificação pelo salário dos soldados, pela melhoria do soldos… então eminentemente você também transita por essas discussões de classes. Mas Búzios é um movimento extremamente poético, estamos falando de um movimento dos que querem ser felizes, é um movimento literário, você escreve sobre isso, faz um texto, um boletim. Mas também é um movimento político, é um movimento reivindicatório, de protagonistas, e me parece que talvez pensar a história do Brasil a partir de Búzios é repensar muito a nossa história, povo negro, pobre e todos os segmentos em vista do mesmo ideal.
O Carnaval do governo é justamente no Pelourinho, então também está conectado com a questão dos negros, de repente lugar também dá essa força.
É o grande celeiro. Exatamente o Centro Histórico, Terreiro de Jesus, é o local onde ocorre boa parte da trama. É um movimento que se você pega o mapa da cidade de Salvador, vai da Gamboa até a Cidade Baixa, toda aquela região, Barroquinha. É o movimento genuinamente urbano, do grande centro de Salvador. Isso também nos faz repensar o que é o Centro Histórico da cidade de Salvador para além da festa. Eu acho que o Carnaval também pode nos dar essa pista para além da festa. O Centro Histórico também é um espaço de articulação política. A Revolta dos Malês ocorre na região do Centro Histórico, o Dois de julho é o ápice, porque o grande embate vai se dar lá na região do Pirajá, mas é o ápice da chegada das tropas. Então o Centro Histórico tem um valor político e significativo. É o espaço da articulação dos blocos afros, ainda que hoje eles estejam localizados em locais diferentes. Mas o Centro Histórico era o grande local do encontro do chamado correio nagô, as pessoas iam passando e falando “vai ter ensaio acolá”. É um momento de revisitar o Pelourinho. De modo geral me Parece que há uma tentativa de não visibilizar alguns aspectos que fizeram parte da nossa história, principalmente no que se refere à questão da escravidão. Me parece que é uma tentativa de não querer trazer isso à tona. É um mal que nós o tempo todo queremos não falar sobre, isso desde o ponto de vista individual. As pessoas dificilmente têm noção que provavelmente nossos bisavós viveram a escravidão ou nem sabe quem é o próprio bisavô, bisavó, que certamente há 150 anos viveu a escravidão ou o final dela. É algo muito recente do ponto de vista individual e do coletivo também. Você chega na cidade de Salvador e quais são as marcas da escravidão? Tudo isso é muito invisibilizado no próprio Pelourinho, ele é um símbolo invisibilizado. Ele foi um lugar de açoite, é o local onde o escravizado foi penalizado, muitos morreram. E nós tivemos pelo menos três pelourinhos diferentes: tivemos um pelourinho onde hoje é a praça municipal, onde tinha o tronco principal, que depois de um tempo começou a chocar as pessoas, vendo uma pessoa ensanguentada; aí ele vai para o Terreiro de Jesus; e, no final no século 19, vai para o lugar mais distante para ninguém ver, que é na ladeira do Pelourinho, um lugar para ninguém ver o sofrimento. Então o Pelourinho é um marco de sofrimento. Não é que ele vai viver do sofrimento, mas é preciso lembrar que aconteceu sofrimento. Você pode até perdoar, mas você não pode esquecer. O Pelourinho precisa ser entendido como esse lugar de sofrimento para lembrarmos do que aconteceu e não pelo lugar da festa. Então se reforça a ideia de que a Bahia é um estado meramente festivo. Não é que não seja, mas se você não conseguir lembrar e dizer exatamente o que foi, passa uma sensação de que está tudo bem. “É isso mesmo, nós já superamos, não precisa mais disso”. Eu digo isso porque em algumas nações o que passou isso é visibilizado. Na Alemanha você não apagou. As pessoas precisam saber o que aconteceu, até para que não aconteça. Então o Pelourinho passa a ser o lugar da festa em que em algum momento nós não vamos mais esquecer o que aconteceu. Eu não sei se isso vai ser assim, mas talvez haja um possível desdobramento sobre isso. Como você falou, o Carnaval no Centro talvez traga para o tema uma luta. E eu torço mesmo para que isso não caia meramente no festivo de novo, mas que tenhamos uma possibilidade de ser sim um espaço comemorativo, mas um espaço comparativo de uma luta. Eu acho que Búzios tem muita coisa aí para vender.
Daqui para o resto do ano a gente vai debater muito sobre isso.
Só rapidamente e falando como isso vai impactar para os blocos afros, eu acho que tem uma questão muito importante: a história das agremiações negras na Carnaval de Salvador. Em 1600, já existiam negros pulando o Carnaval de Salvador, os foliões negros, com seus batuques na rua, isso desde o século 17. Mas no século 19 tem a primeira agremiação, um corpo pensado e articulado para o Carnaval. E aqui em Salvador, no Centro, você vai ter a Embaixada Africana, uma aglomeração de negros levando de uma forma organizada, muito separados por cordões. Então essa é a história da inserção do povo negro na festa de rua em Salvador, é um movimento de resistência porque o espaço do Carnaval era o espaço da elite. Os nobres e os filhos dos nobres iam para os bailes e na saída dos bailes tomavam a rua. Só que quem estava na rua era outra população, a negra. Aí sim virava a festa, era o motivo da festa, muita pancada, muita agressão, tudo que você podia imaginar. E se houvesse revide quem ia preso era o negro, como hoje essa história dos conflitos étnicos do carnaval não começou agora. Então os blocos negros surgem como uma espécie de reivindicação, é um espaço nosso, você está lá eu estou cá, e tudo bem. Isso vai com os blocos chamados de afoxé, que são esses primeiros, depois vem os batuques da escola de samba, e quando chega o Ilê Aiyê me parece que há uma nova leitura do Carnaval. Não é só da reivindicação dos espaço, porque a gente já está na Rua, em 1973 é um movimento de reparação política, de afirmação política, é um movimento reparatório. Então o Ilê, quando surge, surge com o nome de poder negro. E aí imagine você, em plena ditadura militar, o poder negro, os caras: “o poder não pode estar do lado de lá não, tem que estar cá”. Então ele é proibido de colocar esse nome e cria uma estratégia: coloca o nome em Iorubá, que só eles vão entender. Eu digo isso porque para o bloco afro o Carnaval é um espaço de reivindicação política, e não somente um espaço festivo. Digo isso porque a partir do Ilê, vão surgindo vários blocos afros e todos com uma conotação política. Você tem o melôdubam, que vai surgir depois. O Malê Debalê faz uma opção também política. Depois de dois, três meses [de criação], decidem que “Malês” é um nome muito seco. “Vamos colocar um segundo nome”. Aí surgiu o Debalê, que não tem nenhuma tradição, não quer dizer nada, por mais que as pessoas tentem dar um significado, mas é uma palavra sem sentido, uma palavra para rimar Malês, da Revolta dos Malês. A partir daí virou tudo. Nessa sequência vem o Olodum, Muzenza, todos com uma afirmação, para falar de Bob Marley e outros, para falar do Pelourinho, da prostituição, da rua para o bloco afro. O Carnaval também não é só a parte festiva, é o começo. Você vê que todo bloco afro tem um tema e cada tema é pensado antes do Carnaval. O Carnaval de 2018 começou em 2017. Quando você lança o tema, você tem todo um período para trabalhar. Aí vêm as músicas, a escolha do rei e da rainha, no caso do Malê tem a roupa tem que ter relação com o tema e as músicas… Esse simbolismo vai ser trabalhado na escola, e por aí vai. E o tema também tem um pensamento político. Porque você pensa de que forma ele pode ser trabalhado no dia de hoje, o que que tá acontecendo hoje. Você viu que o tema do malê foi “Nzinga, Jokanas e Francisca: Um poder Feminista!”. Há um debate de gênero hoje. E aí o Malê pensa em trabalhar com a mulher negra, a Giovana, que são os indígenas Pataxós, e Francisca, que representam a mulher negra em Itapuã, Dona Francisca. É um debate histórico, mas é político, de reivindicação. Um tema como esse para os blocos afros quer dizer você ter a oportunidade de politizar no seu discurso, na sua performance. Você vai estar com um público específico para dançar o Carnaval, mas é um público que já se acostumou a entender o bloco afro como uma coisa política, não é qualquer música que é um bloco afro vai cantar. Quando o Olodum na década de 1980 lançou o Faraó, foi um “boom” e as pessoas começaram a entender que o Egito era na África. Até os evangélicos tiveram que entender que a saga de Moisés foi no Egito, as pessoas não associavam o egito à África. Então o “boom” do Olodum, para além da história, é um “boom” político da África, quem são, de onde veio, da onde veio isso. Reverberou de tal forma que você passa a pensar de outra forma. Búzios, no contexto de um bloco afro, certamente vai dar esse “boom”. O Olodum já fez isso, talvez hoje seja o bloco afro que mais traga essa questão de Búzios como o elemento do seu simbolismo. O Olodum é autor de um projeto para transformar os jovens búzios em heróis nacionais. Essa luta começou ontem, mas hoje a Bahia abraça no Carnaval .
Fonte: Bahia Notícias